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Papo: John mostra que ainda falta muito para uma conversão de discursos

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Dias atrás aconteceu a pré-estreia de Invencível, filme dirigido por Angelina Jolie. Enquanto a agora-eterna Malévola não compareceu porque estava doente, sua filha, Shiloh, foi o centro de quase todas as matérias sobre o evento. Tudo isso porque a menina apareceu vestida de terno.

Mentira, não foi apenas por isso. Em uma declaração, Angelina disse que agora Shiloh prefere usar o nome John. Espantosamente nenhuma matéria tratou John como alguém que existe. Em todas elas só foi mostrado que ela, Shiloh, gosta de ser chamada de John. Assim mesmo, com todos os tratamentos no feminino. Verdade seja dita, em nenhum local apareceu que Shiloh quer que usem o masculino nas formas de tratamento. Contudo, o nome tilelê de nascença não precisaria estar reforçado em todos os canais e a partir disso um amontoado de discursos conflituosos pipocou.

Muitas pessoas começaram a dizer, sem sombra de dúvidas, que John é uma criança trans. Algumas contestaram trazendo implicitamente em seu contra-argumento que é uma criança cis. Outras ainda questionaram que tudo isso é um machismo que força as mulheres a se masculinizarem e que daí advinha o discurso de que John poderia ser uma criança trans.

Existem muitas complicações nesses lugares de fala. Uma das mais evidentes é que alguns ainda parecem estar atrelados ao pensamento de que um homem trans, por exemplo, só o é se passar por uma mastectomia e fazer uma cirurgia de ressignificação de sexo biológico. Esse discurso tende a negar a existência de corpos transitados e pular para uma normatividade forçada do corpo. Em suma, invisibilizar pessoas trans. Infelizmente, nenhuma novidade. Quanto ainda falta para deixar claro que o gênero é muito mais um prisma do que dois pólos e que a fluidez vai além do binarismo masculino/feminino?

Algumas dessas falas parecem ignorar que existe expressão de gênero. Entendemos que para uma mulher cis se expressar masculinamente para ganhar respeito – por exemplo, em ambientes corporativos – é sufocante e que isso corrobora para/denuncia um machismo extremamente arraigado na nossa sociedade. O problema está em negar todas as expressões – construídas com base em um conceito de feminilidade e masculinidade. Se isso é feito, consequentemente, pessoas trans estão tendo parte de sua identidade negada.

Little John tem apenas oito anos e se o ser humano está em constante construção sócio-cultural, imagina uma criança? Há um mundo de coisas para ser apreendido por alguém dessa idade e outras pessoas afirmarem piamente seu gênero não ajuda. O máximo que podemos fazer é especular. John pode estar apenas espelhando seus irmãos, pode ser uma criança que já entende que quando se expressa femininamente é podada e por isso não quer fazê-lo, pode ser trans e mais um monte de outras especulações. Só que aí esbarramos em outra questão: não nos cabe especular. John deve fazer seu caminho e entender como se vê e se entende, felizmente ao lado de uma família aparentemente respeitosa e consciente. Não faz bem pra ninguém essa categorização em um ser que, bem, não é você.

Obviamente isso não exclui as discussões sobre transgeneridade na infância ou sobre um machismo estrutural que força a mulher a se fazer masculina em diversos momentos de sua vida. Mas, por favor, não faça sua luta social, qualquer que seja, velar aspectos de outras. É necessário ter empatia. Pessoas de qualquer idade querem ser respeitadas, então que o façamos. Se John foi o nome escolhido, que chamemos assim, independente do motivo para essa escolha. Se depois voltar para Shiloh, Shiloh it is. Só lembre que se não há intersecção na sua luta, provavelmente, em algum lugar aí, falta respeito e ela não se faz inclusiva. O que é, no mínimo, muito triste.

Nota: Estamos suscetíveis ao erro, principalmente tratando-se de um assunto tão rico e complexo. Então, qualquer termo ou expressão que tenha sido colocada de maneira incorreta pode e deve ser apontada para que possamos corrigir.
quedelicianegente.com

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